sábado, 4 de agosto de 2018

Três rosas num galho só

Na minha infância passava longas temporadas na casa da minha avó paterna.
Esta minha avó nasceu em São Luiz do Maranhão. Ela e seus dois irmãos vieram para o Rio de Janeiro a convite de um irmão que já morava na cidade.
Minha avó trazia meu pai, Reginaldo Fortuna, com apenas 14 anos, cujo pai havia recentemente falecido. Estes 3 irmãos (Celina, Inês e Vicente) moravam na mesma casa em uma vila chamada de Vila “Chiquita”, na rua dos inválidos, no centro do Rio de Janeiro.
Era habitual as crianças irem brincar na rua. Eu acordava, tomava leite com pão na janela da casa da minha avó e saía para rua para voltar na hora do almoço. Naquele tempo não havia internet, videogames, só havia 3 canais de televisão com imagens em preto e branco e a programação “saía do ar” por volta da meia-noite. O universo lúdico de uma criança se manifestava através de jogos, brincadeiras, de coleção de gibis, soltar pipa, fazer balões, jogar pião, bola de gude e botão, colecionar álbuns de figurinhas onde as repetidas eram trocadas com um amigo e as mais difíceis eram disputadas no jogo do “bafo-bafo”. As ruas da vila, desta forma, se tornavam infinitas.
Tempos depois, uma ordem de despejo da Prefeitura desalojou todos os moradores deste complexo de vilas que foi demolida para dar lugar a novo empreendimento. Eu não percebia muito o que se estava passando, mas lembro-me perfeitamente de ver gente chorando, de amigos de rua partindo e que nunca mais encontraria e de algumas casas vazias em estado inicial de demolição. Parte dos meus sonhos de criança se esfumaçava com o entulho, algo parecido com a última cena do filme Cinema Paradiso. A pouca idade ainda não me fazia perceber que a casa da minha avó ainda não tinha acabado, estava apenas se transformando. Os três irmãos foram então morar na vila “Bom Jardim”, no Fonseca, Niterói, onde eu viria passar outra parte importante da minha infância.
A casa da minha avó era um pequeno Maranhão encravado no Estado do Rio de Janeiro. Comia-se muito peixe, arroz-de-cuxá, beijus, cuscuz, a omnipresente farinha de mandioca, e o “bolo do Maranhão”, um delicioso bolo feito com farinha de tapioca. A parede do quarto do meu tio-avô ostentava orgulhosamente a bandeira do Estado do Maranhão. E se ouvia muitas histórias.
Às vezes à noite, minha avó sentava ao lado da cama e num tom quase sussurrado contava histórias para eu dormir. De todas, a que eu mais gostava era “Três rosas num galho só”. Uma história enorme com reis, castelos, sapos, encontros e amores adiados. Eu ficava ali ouvindo e olhando para o teto do quarto. Me esforçava para não dormir para ouvi-la até o fim mas às vezes adormecia no meio do conto.
Tempos mais tarde, frequentando o Curso de Composição na UFRJ, na Cadeira de “Folclore Nacional Musical”, dirigida pela competente Profa Rosa Maria Zamith, estudávamos a relação entre História de “Carlos Magno e os doze pares de França” e as tradições poético-musicais do Nordeste Brasileiro. Entendi finalmente a razão de todos os elementos que faziam parte desta história que me era contada por minha avó na infância mas que eram estranhos a realidade do Brasil, e resolvi transcrevê-la e apresenta-la como trabalho desta Disciplina.
Ao sair do Brasil para Portugal, sabia que não iria mais ver minha avó e seus irmãos. Resolvi então reuni-los para me despedir. Guardo a imagem dela me acenando na porta de casa e ficando cada vez mais longe. Fui me embora levando comigo muito mais do que o exemplo de força, dignidade, coragem e perseverança do qual aqueles três irmãos para mim eram a expressão máxima.
Em Portugal, recebi durante algum tempo cartas da minha avó com palavras de carinho e incentivo, que no meio ao momento que estava vivendo soavam como as histórias carinhosamente sussurradas que tempos atrás ouvia no pé da minha cama e, da mesma forma, me davam aconchego e me enchiam de imagens. Estas cartas aos poucos deixaram de chegar e a minha avó um dia se foi.
Se foi como as ruas das vilas que eu corria e brincava na minha infância que nem a demolição e a distância conseguiram apagar.
Foi então que descobri que afinal tudo não passava de um sonho e que a casa da minha avó, onde vivi parte da minha infância hoje vive em mim, e que minha avó continua ao meu lado ao ter se transformado numa das rosas daquele galho, cuja história acalentava e embalava meus sonhos de criança que ainda hoje trago comigo.
Para minha avó Celina, com amor do teu neto que não te esquece,
Marcelo fortuna

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Glauco Viana