sábado, 4 de agosto de 2018

Quando a Música me escolheu

Viviam-se tempos muito difíceis no Brasil.
A repressão imposta a partir do golpe militar dado no dia primeiro de abril de 1964 atingiu seu auge com a instauração do Ato Institucional 5 (AI-5), baixado em 13 de dezembro de 1968 e que durou até dezembro de 1978. Nesse período, todas as arbitrariedades se justificavam para punir os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados.
Naquela época ou se estava de um lado ou do outro. De um lado, estudantes, intelectuais e artistas contestavam a política e o conservadorismo impostos pelo regime. Do outro, os militares que respondiam com cassações políticas e desrespeito aos direitos humanos no nível mais básico.
Cabiam aos artistas direcionaram o fruto do seu trabalho à contestação das políticas repressivas e conservadoras e em defesa da liberdade de expressão. Era isso que se esperava dos artistas naquela fase e foi dessa forma que meu pai e uma geração de cartunistas se tornaram chargistas, nas suas próprias palavras.
Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro, era uma espécie de point dos intelectuais e artistas que faziam oposição ao regime. Em 26 de junho de 1969 sai a primeira edição do semanário O Pasquim, reconhecido pelo diálogo entre o cenário da contracultura da década de 1960 e por seu papel de oposição ao regime militar. Esse semanário, imaginado por Tarso de Castro e pelo cartunista Jaguar como um jornal do bairro de Ipanema, revolucionou também a linguagem do jornalismo brasileiro, que nunca mais seria a mesma. Dentre os jornalistas destacados da época que o fundaram estava o meu pai.
Os hippies, ícones da contracultura da época, tinham na Praça General Osório, em Ipanema, a sua feira, onde eram expostas para venda artesanatos, roupas, móveis, pinturas e esculturas. Era a “Feira Hippie”.
Eu era um habitual frequentador desta feira junto com meu pai. Eu ficava fascinado com as cores das roupas e dos quadros. Num desses passeios, fiquei parado olhando uma violinha de madeira feita à mão pendurada numa das tendas. Era uma violinha feita de uma madeira de cor amarela e em formato oval, com trastes feitos a ferro quente, tarraxas encravadas na madeira (como as antigas guitarras) e cordas de arame. Pelas características, o que seria provavelmente um adorno para exposição em uma parede qualquer, para mim foi o primeiro veículo de expressão musical desde este dia em que meu pai resolveu comprá-la e me dar de presente.
A primeira manifestação de que eu havia sido escolhido pela música sem que eu me desse conta disso, foi a angústia. Lembro-me até hoje de uma música com orquestra que passava durante a exibição das imagens do incêndio do edifício Andraus, em 1972, em São Paulo. A angústia era terrível e eu corria para os quartos dos fundos da casa para não ouvi-la. Da mesma época era uma campanha de vacinação contra o tétano, com imagens reais de crianças na fase final da doença, em que a trilha sonora era nada mais que o Prelúdio nº1 de Villa-Lobos, cuja angústia causada pela sua audiência só seria resolvida anos mais tarde quando me tornei estudante regular de violão.
Assistindo a um programa de rock na televisão, vi que um guitarrista se utilizava de um recurso que permitia o portamento das notas nas cordas do instrumento. Era o slide, um pequeno tubo oco cilíndrico, feito de metal, vidro ou cerâmica colocado geralmente no dedo mínimo, indicador ou médio da mão esquerda com o objetivo de alterar o tom em que se toca, deslizando esse tubo pelas cordas da guitarra, comum na música do Havaí, no blues e no country. Como a tal violinha não tinha trastes, resolvi utilizar o mesmo recurso. Na falta de um slide usava uma pilha pequena que dava o mesmo efeito. Foi assim que conseguia tirar qualquer melodia de ouvido. O meu pai sempre atento, só observava.
Um dos grupos mais representativos da contracultura nesta época eram “Os novos Baianos”. A combinação de cordofones* acústicos com elétricos com diversos ritmos brasileiros e que iam da Bossa Nova ao Rock’n roll começou a me criar real interesse no estudo de um instrumento de verdade. Por falta de recursos para executar melodias além do limite do instrumento, meu pai resolveu comprar o meu primeiro violão. O que para mim era uma brincadeira para o meu pai não era. Talvez ele tivesse percebido antes de mim que eu havia sido escolhido pela música.
A facilidade com que tocava violão me fazia popular entre os amigos da escola. E graças ao violão meu fim de semana era sempre concorrido, entre festas, encontros e viagens. Ao ouvido “absoluto,” com a prática instrumental, se somou o ouvido “relativo”, o que quer dizer que reconheço as notas dentro da frequência correta mas ao mesmo tempo a relação intervalar de uma nota independente da altura, e a função harmônica de cada acorde dentro de uma sequência, o que na prática, dentre outras coisas, faz com que acompanhe qualquer música em qualquer tonalidade. Mesmo assim, não contemplava a música como meio de vida.
O meu pai já pensava diferente: Não admitia que eu fosse músico amador (“Músico de hora vaga”, como dizia), que não expusesse meu trabalho a julgamento público e desde muito cedo insistia na composição. Quando foi morar em São Paulo, me telefonava com alguma frequência para saber se eu já havia composto alguma coisa… Nossos encontros em privado se tornaram verdadeiras aulas de ética, deontologia e conduta profissional, cujos princípios ainda hoje orientam a minha atividade profissional.
Depois de algumas tentativas de trilhar outros caminhos, finalmente aos 16 anos de idade assumi a música como profissão. No dia 26 de julho de 2016 estarei comemorando 35 anos de carreira.
Essa nota fica como homenagem a todos os artistas e em especial àqueles que através das cores desafiaram e venceram tempos sombrios. As mesmas cores daquela tenda onde um dia encontrei aquela violinha que me abriu um horizonte, definiu meu caminhar além de me revelar um presente que me foi dado de graça e pelo qual retribuo procurando humildemente ser expressão verdadeira do sentido de ser Músico em toda a sua plenitude.
Obrigado por tudo mais uma vez, meu pai.
* São instrumentos musicais cuja fonte primária de som é a vibração de uma corda tencionada quando beliscada, percutida ou friccionada Copidesque: Felipe Fortuna

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Glauco Viana