sábado, 4 de agosto de 2018

Pérolas do pensamento Fortuniano


"O metrônomo é o melhor amigo do Homem depois do cão!"

"Pensamento do dia: Um anão que morre atropelado por um Tuktuk numa viela de Lisboa é tragédia ou minimalismo?"

"Ser espaçoso pode ser sintoma de pequenez"

"É melhor ter paciência do que ser paciente"

"Quem se antecipa ao combate no mínimo ganha a aposta"

"Um segredo, que na amizade cria laço, na cumplicidade pode criar embaraço"

"Ter uma porção mulher não implica ter uma porção de mulher"

"Conversa mole é mais fácil de ser digerida"

"Só atinge a iluminação quem medita e...Paga a conta da luz"

"Felicidade suprema é ter saúde, bons amigos, uma boa companheira e...Um bom mecânico!"

"Simbiose: União matrimonial feliz entre dois Biólogos"

"Crise de fé é caminhar sobre as águas com um salva-vidas"

"O termo "sofrência" advém da perspectiva de quem canta ou de quem ouve?"

"Manémetro: Instrumento utilizado para medir a nossa capacidade de incorrer no mesmo erro por duas ou mais vezes"

"O prudente é o profeta do previsível"

"Só um autor de um ato desnecessário nele vê necessidade"

"O consenso são as férias coletivas das convições pessoais"

"Para quem insiste no erro: Vai tentando que um dia você não consegue..."

"O cúmplice é o único que leva alguma coisa desta vida"

"Fome de leitura não se mata com sopa de letras"

"Quem nasce pra rebolar nunca chega a dançarino"

"O brilho do vagalume não o faz ser invejado"

"Litígio é quando uma parte quer "virgula" onde a outra quer "ponto""

"O "mexeu com uma, mexeu com todas" também se aplica ao Jogo de Xadrez"

"A luz que ofusca é a mesma que pode indicar um caminho"

"Quem pinta o cabelo quer branquear o passado"

"A diferença entre o rebolado da passista e o da cobra é a intenção"

"Dar pernada a 3 X 4 é melhor do que levar um golpe de 64"

"Só os galináceos conseguem manter um relacionamento por pena"

"O PEC da morte é fogo!"

"Olho por olho, com o cuidado de não ser você o primeiro a ficar cego"

"A vaidade nos reduz ao que pensamos que somos"

"Quando a violência surge como último recurso é porque você já perdeu a guerra"

"Quem segue montado num burro é porque aceita a natureza do animal"

"Os preconceitos ressurgem quando os conceitos não são honrados"

"Voto em candidato desonesto, antes que pobreza de voto, é voto de pobreza"

"Um circo gerido pelo palhaço sempre pega fogo"

"O voto útil é o voto inútil terceirizado"

"Quem troca privilégios por bala, tem que ser amigo do baleiro"

""Piada velha" é aquela que é contada sobre a História que se repete"

"Sertanejo universitário é Música de desistência"

"Muitas vezes o barco afunda por competência do capitão"

"O medíocre vê o furo na tua calça antes de ver a calça"

"A cultura que entra em choque é a cultura da violência"

"As duplas de sertanejo universitário são a prova cabal e definitiva de que um mal nunca vem só"

"Passarinho que não sabe a hora certa de largar o galho corre o risco de ir pra gaiola"

"O cúmulo do vazio é ser excluído de uma festa que não aconteceu"

"O Músico muitas vezes é mais admirado por conseguir viver de Música do que pela qualidade da obra"

"Com voto reativo, o candidato é eleito com o programa do adversário"

"Força de pensamento mesmo é escrever errado com o corretor ortográfico"

"Entra bem quem não sabe a hora certa de sair"

"Quem tem medo de rompimento é marionete"

"Peixe morre pelo Twitter"

"O produto do conluio entre dois pequenos é sempre menor do que a soma das partes"

"O descompromisso cria o amador"

"Imortalidade mesmo é atestado de óbito com prazo de validade"

"O princípio da reciprocidade não se aplica entre um leão e um vegano"

"O bitcoin criou o cyber mendigo"

"Se for entrar numa sopa, procure ser a colher"

"Quando tudo se acaba, só resta o brio"

"Quem se escuda com palavras tem medo do adjetivo"

"Andar com gente pequena no mínimo dá dor nas costas..."

"Terra plana é um assunto chato"


"Ter certezas é o caminho mais curto para a irrelevância"

"Borda do Mundo é o fim da picada!"

"Não se bebe cachaça por vontade, mas por motivo"

"Melhor passar pela vida como o sopro de Niemeyer do que como pum do palhaço"

"Melhor inteligência artificial que burrice natural"

"Nem tudo que voa é livre"

"Melhor dançar quadrilha juntos que dançar junto com a quadrilha"































Eu

Só falava dele. Da vida dele. Dos projetos dele. Quando estava num grupo de pessoas, Só falava dele, da vida dele, dos projetos dele. Abordava os assuntos sempre da sua perspectiva. Quando não aceitavam o seu “Eu”, ele o impunha. Com tanto “Eu”, sua vida começou a ficar sem espaço. Numa noite qualquer, acordou cercado de “Eu”. Procurou desesperadamente por uma mão, e só havia a dele. Agarrou nesta mão e acabou morrendo afogado de si mesmo.

Orquestra de Cordas Brasileiras

Na década de 80, a Prefeitura do Rio de Janeiro, através da RIOARTE, promovia concursos de conjunto de choro que posteriormente seriam transformados em oficinas de choro. Nestas oficinas, músicos de dois dos grupos de choro com mais destaque nesta época (Galo Preto e Camerata Carioca) davam workshops de choro nas instalações da UNIRIO.
No final de uma destas oficinas, eu, Marcus Ferrer e Josimar Carneiro, que nesta época tínhamos um Trio de violões, o “Conversa de cordas”, propusemos a dois professores, Afonso Machado e Henrique Cazes, a continuidade daquele trabalho sob a forma de um grupo de câmara. A ideia foi aceita e o Grupo foi criado.
Este grupo, que posteriormente seria batizado de “Orquestra de Cordas Brasileiras” (OCB), era semelhante a um outro grupo que já existia, que era a Orquestra de cordas dedilhadas de Pernambuco, criada por Cussy de Almeida no contexto do Movimento armorial, de Ariano Suassuna. A nossa proposta era transcender as fronteiras entre o erudito e o popular, tendo em Radamés Gnattali uma de nossas principais referências.
Esta Orquestra, na sua forma, se baseava na Orquestra de Câmara. Os instrumentos de cordas de arco seriam substituídos por seus homólogos de cordas dedilhadas ou pinçadas dentro da mesma proporção e funcionalidade. A disposição definitiva da OCB era a seguinte: Dois bandolins, dois cavaquinhos, duas violas caipiras, três violões (sendo que um deles tinha sete cordas), um contrabaixo e percussões.
A fundação “oficial” da OCB se deu em Março de 1987. A sua estreia foi em 1988 na Sala FUNARTE, sob a Direção de Túlio Feliciano.
A sua primeira formação era a seguinte:
Bandolins – Afonso Machado, Rodrigo Lessa, Alexandre Nunes ( Araujo) e Alexandre de la Peña
Cavaquinhos – Henrique Cazes e Jayme Vignoli
Violas caipiras – Marcus Ferrer e Marcelo Fortuna
Violões – Bartholomeu Wiese e Jaime Ernest Dias
Violão de 7 cordas – Josimar Carneiro
Contrabaixo – Ronaldo Diamante
Percussões – Beto Cazes e Bolão
Posteriormente, Alexandre Nunes seria substituído por Marcílio Lopes, Jaime Ernest Dias por Paulo André Tavares, e depois por Luiz Flávio Alcofra, e Ronaldo Diamante por Omar Cavalheiro.
Em 1992 fui para Portugal, tendo sido substituído por Mara Lúcia Ribeiro, e depois por Fábio Nim. Em 1996 a OCB terminaria o seu ciclo, deixando a sua marca na Música Brasileira.
Discografia

"Orquestra de Cordas Brasileiras" (Kuarup 1989) - Prêmio SHARP de melhor grupo e melhor disco instrumental
"Chiquinho do Acordeon, Raphael Rabello & Orquestra de Cordas Brasileiras - Retratos" (Kuarup 1990) Prêmio SHARP de melhor disco instrumental
"Radamés Gnattali e a Música popular" (Kuarup 1990) - Orquestra de Cordas Brasileiras, Radamés Gnattali, Chiquinho do Acordeon e João Carlos Assis Brasil
"Piazzolando com sotaque brasileiro" (Kuarup 1991) - Orquestra de Cordas Brasileiras, Chiquinho do Acordeon, Rio Cello Trio, Quinteto Villa-lobos e Paulo Sérgio Santos
"Instrumental no CCB – Wagner Tiso e Orquestra de Cordas Brasileiras" (1993)
"Sempre Jacob" (1996) - Orquestra de Cordas Brasileiras, Déo Rian, Joel Nascimento e Nó em Pingo D'Água
"Choro do Quintal ao Municipal" (1998) - Orquestra de Cordas Brasileiras, Chiquinho do Acordeon, Copinha, Época de Ouro, Déo Rian, Joel Nascimento, Orquestra Pixinguinha, Paulo Moura, Paulo Sérgio Santos, Raphael Rabello e Sexteto Brasileiro

Sobrevivência

Há muitos anos resolveu pegar a estrada e viver bem longe do que lhe era familiar. Levava numa bolsa, vozes, encontros, toques, sorrisos e a música da sua terra. A dura labuta em terras longínquas lhe auferia provento ao mesmo tempo que moía seus sonhos. Neste caminho, a nesga de luz que insistia em entrar pela fresta de sua vida era apagada por pessoas que não gostavam do seu brilho. Aos poucos ele foi perdendo o sorriso que era a sua força, e o que levava na bolsa começou a dissolver. O que era real e palpável passou a ser idealizado, e ele começou a se tornar pó. Foi então que um anjo que passava lhe gritou: Poeta! A palavra dita pelo anjo transformou o pó que a estrada quase o havia reduzido em palavras que ele agora cavalga com o rosto banhado em luz, agarrado à sua velha bolsa. Para o amigo Ligório Nery, no dia do seu aniversário.

Corte

Caminhava por cima das pedras em direção ao mar. Levava dentro da mão direita um anel de metal que um dia foi uma aliança. Parou na ponta de uma pedra, fechou os olhos e, como numa reza, balbuciou convictamente frases ritmadas, devolvendo ao Universo atos e palavras em forma de metal circular.
Então jogou o anel no mar, caminhou de volta sem olhar para trás e nunca mais voltou àquele lugar. O mar, no seu ciclo infinito, cobriu o que havia restado da aliança, que junto com o sal marinho, carcomeu promessas, sonhos, compromissos e caminhos que nunca foram e serão percorridos. E a vida seguiu no seu vai e vem, diluindo e renovando esperanças, transformando e libertando sonhos sem nunca perder a sua essência, que é o motor de encontros e despedidas, que são intensos e impermanentes como as ondas do mar.

Casinha branca

Era sempre visto pintando a sua casa de branco. Enquanto os vizinhos descuravam deste cuidado para correrem atrás de sonhos, ele sempre conseguia um tempo para pintar a sua casa. E assim fazia, com com muito carinho, por pinceladas lentas e precisas, sem ligar se estava alegre ou triste, se as coisas tinham ou não corrido bem, se chovia ou fazia sol. Um dia, um amor estava passando pela sua rua e viu, dentre moradas e lares adiados, uma casa impecavelmente branca, e resolveu entrar sem bater à porta. Entrou, fechou a porta, e ficou morando na casinha branca para sempre.

O sonho

Quando despertou de um sonho, com pinceladas pouco precisas, pôs-se a pintar um quadro com as cores que tinha nas mãos.
Pousou então o quadro sobre a mesa do quarto e, com os olhos brilhando e com os pincéis molhados de tinta, saiu pelo Mundo a procura das cores que não tinha nas mãos. As mesmas cores que tinha visto no sonho do qual havia despertado.
Aqueles que compartilhavam o seu mundo não compreendiam o significado do que estava pintado e o por quê da sua busca pelo Mundo. E assim o quadro ficou no mesmo lugar em que estava pousado por muito tempo.
Numa manhã qualquer, o tempo, o espaço e a distância deram as mãos e começaram a girar e a brincar, e as cores pintadas com pinceladas pouco precisas começaram a ganhar vida.
Aqueles que amavam aquela pessoa que um dia saiu a procura das cores que não tinha nas mãos voltaram ao quarto que ela havia deixado para trás. E pela primeira vez o quadro foi tocado.
Estava tudo ali, por entre cores agora desbotadas: As conversas adiadas à volta da mesa, o amor que não libertava, e palavras que nunca foram ditas.
Ao mesmo tempo que uma lágrima salgada descia lentamente do rosto de quem tocava a tela, as cores e o sonho foram entendidos e passaram a girar e a brincar de mãos dadas com o tempo, o espaço e a distância.
Com carinho e cuidado, o quadro finalmente foi colocado na parede do lugar de onde anos atrás vivia a pessoa que partiu para o Mundo em busca das cores e do sonho, ainda com o pincel molhado de tinta. Os sonhos e as cores agora eram também das pessoas que a amavam.
E assim ela viveu para sempre, no ninho que a viu nascer.

O caminho

Foi no caminho de volta que encontrou palavras soltas na estrada. Sem saber o que fazer com elas, colocou-as na sua mochila e seguiu.
Quando descansou, sentou-se em baixo de uma árvore, tirou as palavras da mochila e com elas formou frases que compreendia literalmente.
Quando chegou no seu destino, tirou novamente as palavras da mochila e mais uma vez formou frases. Mesmo as organizando dentro das regras que tinha aprendido, sentiu que estas não faziam sentido, e resolveu devolvê-las onde as havia encontrado.
Voltou, pôs as palavras no mesmo lugar no chão da estrada e, mesmo soltas e não organizadas, começaram a fazer sentido.
Com os pés descalços, respirando a brisa perfumada que passava, entendeu que tais palavras, mesmo não compreendidas literalmente, fizeram com que voltasse ao lugar de onde nunca deveria ter saído, e foi desta forma que retomou seu caminho.
E seguiu em frente, sem olhar pra trás e abraçada ao sol que brilhava, levando as tais palavras que um dia encontrou soltas na estrada, agora não mais na mochila, mas antes no coração.

A cigarra e as formigas...

Num Verão qualquer, sentada numa pedra, uma cigarra cantava melodiosamente acompanhada pelo seu violão, enquanto as formigas trabalhavam para acumular provisões em seu formigueiro, esperando pelo Inverno.
Eis que o Inverno, frio e cruel, finalmente chega! Mas ao contrário da Fábula atribuída a Esopo (1), e recontada por Jean de la Fontaine (2), a tal cigarra não bateu à porta do formigueiro, em total desamparo... No Verão seguinte, as formigas retomam a sua labuta, trabalhando mais uma vez arduamente para acumular provisões em seu formigueiro, esperando pelo Inverno... Uma formiguinha mais inteligente observou que a tal cigarra, como no Verão passado, já não estava sentada na pedra, cantando melodiosamente com seu violão. E o pior: Que sem a música da tal cigarra, o ânimo e o ritmo de trabalho das formigas havia diminuido sensivelmente, a ponto de pôr em risco a cota mínima de provisão para o Inverno que fatalmente iria chegar... Mas afinal, o que aconteceu?... A cigarra, que no passado Verão, sentada numa pedra cantava melodiosamente acompanhada pelo seu violão, tomou o cuidado de só interpretar músicas de sua autoria, e sendo ela a proprietária intelectual (3) destas obras, que eram previamente registradas de forma a preservar os “Direitos de autor”(4) e os “Direitos conexos”(5), recebia os Direitos não só pela execução de suas obras em público mas pela sua reprodução nos mais diversos meios de comunicação. Uma parte do dinheiro arrecadado com estes Direitos, a cigarra investiu em especialização: Aulas de técnica vocal, técnica de violão, harmonia funcional, e finalmente o curso superior de Musicoterapia, por e-learn, uma vez que morava na floresta, longe do centros urbanos. A tal formiguinha inteligente, incomodada com a falta de coerência desta situação com a Fábula atribuída a Esopo, e recontada por Jean de la Fontaine, com o desaparecimento da tal cigarra, com o fato dela não ter batido à porta do formigueiro em total desamparo quando começou o Inverno, e com as implicações da relação música/produtividade laboral que comprometia as provisões do Inverno que se avizinhava, foi buscar respostas no Google, no aconchego do formigueiro. E foi através deste buscador que ele descobriu que as tais músicas estavam somente disponíveis no iTunes para download, ao preço de 0,99 Euros por canção...
Não lhe restou outra alternativa senão divulgar o link para o formigueiro buscando desta forma retomar o ânimo e a produtividade do passado Verão, quando as formigas trabalhavam para acumular provisões em seu formigueiro, esperando pelo Inverno, e em que a tal cigarra, sentada numa pedra, cantava melodiosamente acompanhada pelo seu violão.... Foram dezenas de milhares de downloads! E sem a tal cigarra que outrora sentada numa pedra e que cantava melodiosamente acompanhada pelo seu violão, as formigas agora labutavam alegremente com seus iPhones, ouvindo sucessos da tal cigarra...
Com o dinheiro advindo do iTunes, a cigarra escreveu e editou um “Songbook de canções de Verão” e fez um video de “Motivação laboral pela música” (Que fazia o maior sucesso entre as formigas...), além de montar uma escola de música para jovens cigarras. Agora ela ganhava dinheiro não só dos “Direitos de autor” e “Direitos conexos” pelas cigarras cantoras que debutavam as obras do seu Songbook pelo Verão, mas como editora, diretora escolar e docente. E ainda conseguia um tempinho para dar consultas de Musicoterapia para formiguinhas stressadas e esmagadas pela rotina, falta de perspectiva e pressão laboral. Algumas ainda apresentavam sinais de agorafobia, o que comprometia o trabalho em equipe... E foi dessa forma que as formiguinhas alegremente continuaram a sua labuta pelo Verão afora, trabalhando para acumular provisões em seu formigueiro, esperando pelo Inverno, mesmo sem cigarra que outrora cantava melodiosamente acompanhada pelo seu violão, sentada numa pedra... E quando se aproximava o Inverno, a cigarra, ao contrário da Fábula atribuída a Esopo, e recontada por Jean de la Fontaine, não batia à porta do formigueiro, em total desamparo, mas antes viajava em 1ª classe para os Países do Sul onde divulgava sua obra musical, livros e vídeos. Nunca mais se sentou naquela pedra e nunca mais viu um Inverno... E foi assim que a cigarra e as formigas foram felizes para sempre! (Fica esta singela homenagem a todos os profissionais que fazem da Música o seu sustento e meio de vida.)
-------------------------------------------------------------------------------------------------------------- (1) Foi um escritor da Grécia Antiga a quem são atribuídas várias fábulas populares. A ele se atribui a paternidade das fábulas como gênero literário.
(2) Jean de La Fontaine (1621-1695) Foi um poeta e fabulista francês.
(3) A Propriedade Intelectual é um conjunto de direitos que abrange as criações do conhecimento humano. Divide-se, tradicionalmente, em duas grandes áreas: Direito de Autor (e Direitos Conexos) e Propriedade Industrial.
(4) É um Direito do Homem e um Direito Fundamental, que protege as obras ou criações intelectuais.
(5) Os Direitos Conexos são aqueles que protegem as prestações dos artistas intérpretes ou executantes, dos produtores de fonogramas e de videogramas e dos organismos de radiodifusão

Mariola Landowska

Década de 90 em Portugal. Os acordos que Portugal acabara de firmar com a União Europeia (UE) que garantiam, dentre outras coisas, transferências diárias de milhares de Euros (Na época era o “Escudo”) definiram certa “vocação” Europeia da política nacional, o que na prática se traduzia na proteção de cidadãos e da cidadania Europeia em detrimento de outras comunidades de imigrantes. O Brasil vivia uma espécie de Diáspora com a 1ª leva para Europa de imigrantes que fugiam da “Era Collor”. Eram momentos muito difíceis… Portugal de então, tradicional país de emigrantes havia se tornando um país de imigrantes com todos os problemas inerentes a esta realidade.
Do outro lado, a Casa do Brasil, com Alípio de Freitas, lutava pelo cumprimento e manutenção de acordos firmados entre Portugal e Brasil antes da UE e pela dignidade e direitos dos imigrantes que chegavam a Portugal. Várias ONGs lutavam pelo mesmo, por outras comunidades de imigrantes.
Foi neste contexto que fui convidado para representar o Brasil numa conferência patrocinada pela Fundação OIKOS, e que contava com representantes de Portugal, Macau, Gôa e de Países da CPLP (Comunidades de Países de Língua Portuguesa). Foi para mim uma honra e uma grande responsabilidade. Na plateia, cidadãos de todos os continentes que viviam e compartilhavam a mesma história. Foi neste evento que conheci uma artista plástica Polaca (Polonesa, no Brasil): Mariola Landowska.
Mariola Landowska, tal como eu, havia decidido viver em Portugal, que segundo ela “lugar de ligação das culturas luso-brasileira e luso-árabe” que no momento era exatamente o que eu buscava com meus temas de inspiração Nordestina. A afinidade foi imediata e nos tornamos amigos para sempre.
Às vezes passava horas no seu atelier observando e compartilhando o processo de criação de suas obras, e contando e ouvindo histórias de vida. Me chamava atenção as cores de suas pinturas, que remetiam não só a sua vivência com índios das tribos Pi-Kiriri e Fulni-ôs no Brasil mas que ao mesmo tempo estavam presentes no folclore Polaco. Deste convívio, devo a Mariola Landowska o contato com a comunidade Polaca residente em Portugal, onde fiz muitas amizades sinceras ampliando o conhecimento de uma cultura que pouco conhecia.
Numa de nossas caminhadas pela vila de Paço D’Arcos, Mariola Landowska deparou com um espaço dentro de um complexo arquitetônico que foi construído nos finais do Século XV e que viria ser o seu atelier durante cerca de 3 anos. Foi lá o palco de encontros históricos de música, pintura e poesia onde não só a arte era festejada e celebrada, mas antes de tudo a amizade. Tenho a honra de ter várias obras de Mariola Landowska expostas na sala da minha casa, que para mim tem um valor afetivo inimaginável.
Podia dizer muito mais sobre a grandeza da Mariola Landowska, que para mim, antes de tudo, será sempre a minha “Polaquinha preferida”.
(Esta singela homenagem surge num momento de fechamento de ciclo, em que o seu atelier em Paço D’Arcos será encerrado. Conheça o trabalho de Mariola Landowska no site: http://www.mariolalandowska-art.com/mariolalandowska-art/Home.html)

A menina que contava histórias

Numa pequena aldeia que ficava entre duas montanhas que num fim de tarde uma menina nasceu. Era muito branca, tinha os olhos azuis, cabelos negros e dormia numa cama que um dia pertenceu a uma princesa.
Aprendeu a falar muito cedo e tinha o dom de ouvir e de conversar sobre as coisas que aconteciam na aldeia.
A vida era muito dura nesta época. A labuta nos campos, a colheita que não aconteceu, a fome, o rigor do inverno que nunca passava, o isolamento da aldeia.... Mesmo assim os habitantes conviviam pacificamente e buscavam um no outro forças para continuar a viver. Por isso, sempre à noite, depois de um dia de trabalho, se reuniam à luz de um lampião para conversar. Eram longas conversas em que se falava dos anseios, dos problemas, das coisas da vida. Todos tinham o direito a palavra. Os olhos azuis da menina observavam tudo silenciosamente, até que um dia ela resolveu falar. Foi neste dia que, com uma voz calma e doce, ela interpretou os problemas da aldeia como nunca dantes se havia ouvido. E contou histórias lindas. Os olhos dos habitantes se encheram de esperança, os sorrisos se abriram e as dores já não doíam como antigamente. As histórias que a menina contava faziam a aldeia e os sonhos irem muito além das montanhas. A fama da menina dos olhos azuis que trazia esperança correu pelos vales e cada vez atraía mais gente para a pequena aldeia. Todos queriam ouvir a sua voz doce nas reuniões do fim da tarde. Um dia ela resolveu ir para a cidade, e foi numa manhã fria que os habitantes viram-na partir por uma estrada de areia. Na cidade ela viu os mesmos sofrimentos e inquietações que outrora havia visto na aldeia, mas as pessoas não se olhavam, não se ajudavam, não se reuniam ao fim da tarde à luz do lampião. Simplesmente não tinham tempo para sonhar e ter esperança.
De nada valiam seus olhos azuis, sua voz calma e doce, e os sonhos que trazia na bagagem. E então ela foi ficando triste. Muito tempo depois ela resolveu voltar pela mesma estrada de areia e se refugiou num moinho que ficava numa das montanhas que cercavam a aldeia, e nunca mais foi vista. Dizem que o mesmo vento que movia as pás do moinho levou o pó dos seus sonhos que hoje caem sobre o vale e corações quando vem a chuva.
E foi assim que a menina que contava histórias se tornou eterna. Para Cláudia Beatriz Carvalho Fonseca

A vendedora de sonhos

Vivia só numa cabana. Apesar da dureza do dia-a-dia tinha uma vida simples e feliz. De dia partia para o campo e fazia da enxada seu meio de vida. Suas mãos calejadas tiravam da terra o necessário para sua sobrevivência. À noite refletia sobre e sua vida, antepassados, referencias e valores que o sustentavam espiritualmente, sempre sob a luz do lampião. Fui numa noite que ele ouviu alguém bater a porta. Ao abri-la, a chama da lâmpada que trepidava com o vento que vinha de fora fez com que ele só visse um vulto na escuridão. Com voz doce, a pessoa que batia na porta pediu para entrar na cabana. Com a porta fechada, a chama que já não trepidava iluminou o rosto do visitante: Era uma mulher muito bonita, com longos cabelos e os olhos muito grandes e expressivos. As noites de reflexão sob a chama do lampião se tornaram noites de conversa. A mulher falava da vida, de afetos e histórias de terras longínquas. Foi numa destas noites que as mãos se tocaram pela primeira vez. Deste afeto nasceu o carinho. Do carinho nasceu o amor, e deste amor, os sonhos. E decidiram viver este momento com o que tinham nas mãos.
Numa manhã fria, a mulher partiu sem que se desse conta. E levou consigo o cesto com sonhos partilhados que estava ao lado da cama. O homem que vivia sozinho sentiu pela primeira vez o gosto da solidão e a terra pela primeira vez sentiu falta de quem sempre a acariciava com a enxada pela manhã.
À noite, a chama do mesmo lampião o fez ver claramente que afinal nunca se perde o que nunca se teve. Um cesto de sonhos partilhados roubado tem o mesmo valor do que palavras soltas a vento. Concluiu que a vendedora de sonhos saiu tão vazia como chegou, e levou um cesto cheio de nada. Foi neste momento que deixou se ser solitário para simplesmente voltar a ser sozinho. As mãos calejadas que um dia tocaram as mãos da mulher que bateu a porta voltaram a tocar na enxada, e foi desta forma que voltou a viver a sua vida simples e feliz.
Desde então ele nunca mais trancou a sua porta à noite deixando-a entreaberta. Entendeu que amor nunca bate a porta, simplesmente entra sem pedir licença.
E que os sonhos não se vendem.

A fotografia

Foi procurando um objeto no sótão da sua casa que por mero acaso descobriu num armário uma caixa de madeira. Nela continha uma série de fotos desgastadas pelo tempo. Nesta caixa, uma foto o chamou particularmente a atenção: Era de um ente querido que há muito havia partido. A visão da imagem despertou uma vaga lembrança de palavras que outrora lhe foram ditas com muito carinho logo quando ele começou a despertar para a vida. Mas subitamente virou o rosto para o lado e voltou a se concentrar no que estava fazendo. Deixou a caixa no lugar onde estava há muito tempo e foi desta forma que a vaga lembrança se esfumaçou e se misturou com a poeira das fotos. A vida seguiu seu rumo e o tempo passou.
De volta ao sótão muitos anos depois, encontra tal caixa de madeira no mesmo lugar. Com um sopro ela afasta a poeira da caixa, abre-a e encontra as tais fotos agrupadas da mesma forma. A foto que tempos atrás lhe havia chamado atenção estava ali, agora ainda mais desgastada pelo tempo. Mas desta vez nada o desconcentrou. Aos poucos a imagem do ente querido ia se tornando mais clara à medida em que a poeira desaparecia fugindo pela fresta das telhas do sótão rumo ao céu escuro com nuvens carregadas de chuva. Segurou a foto e lentamente afastou-a de sua vista cansada de forma a conseguir vê-la com alguma nitidez. A imagem o fez ouvir as palavras sussurradas que um dia lhe foram ditas com carinho e firmeza, que na caminhada da vida foram fazendo sentido. Lembrou-se das palavras de embalar que criavam imagens e sonhos no leito de criança, das palavras de afeto que o distraiam quando havia medo, das palavras de incentivo quando havia dúvida, das palavras de cautela onde faltava o senso de medida, e do elogio e reconhecimento onde havia o mérito. E sem que se desse conta, uma lágrima lentamente desceu pelo seu rosto ao mesmo tempo que lá fora uma chuva fria se desprendia das nuvens escuras e transformava a poeira assoprada que fugia pelas frestas do telhado em um filete de água que corria por entre a pedras da calçada. A sua mão tremula devolveu à velha fotografia o mesmo calor da mão que um dia o pegou no colo, o fez adormecer, e que o amparou nos primeiros passos, e que, longe do toque, lhe apontou um caminho. E foi assim que conheceu o verdadeiro sentido da palavra gratidão. Lenta e carinhosamente pousou a fotografia e fechou a caixa de madeira deixando-a no mesmo lugar. Assim que a chuva passou se foi do sótão sem olhar pra trás, para nunca mais voltar. Compreendeu que sua vida tinha sido a projeção da imagem da velha fotografia, que afinal as palavras sempre o acompanharam e que por elas sua trajetória tinha fluido como o filete de água que não embatia mas antes acariciava as pedras do seu caminho.
E que a vida é um sopro*. * Frase de Oscar Niemeyer.

Inverno

Nasci pouco tempo depois do início de um longo Inverno.

As pessoas andavam tristes. Ninguém cantava. O sol nunca se abria e estava sempre chovendo. Muitas flores deixaram de nascer e muita gente se foi nesta chuva para nunca mais.
Depois de muito tempo de céu escuro e chuva, algumas pessoas corajosamente clamaram por sol, e se abraçavam, conversavam, riam e cantavam. Aos poucos a chuva foi deixando de fazer sentido e timidamente o sol começou a aparecer. Junto com o sol vinha a brisa. Junto com a brisa, a voz. E com a voz, o canto. Com canto, a música.

Sob o cheiro de brisa salgada e antes das nuvens se afastarem e dos filetes de luz que iriam adentrar através das frestas das janelas e dos corações, resolvi montar nas asas de um pássaro que passava e com ele fui para outras terras.
Pela primeira vez contemplei a vida acima das nuvens, das mesmas nuvens que escureciam as ruas e que não paravam de chover durante muitos anos. E da terra onde este pássaro me levou conseguia ver tempos coloridos, como o arco-íris que surgiu depois do fim da chuva. E finalmente vi o sol de frente.
Acreditei por um momento que aquele momento seria para sempre e que nada seria como antes.
Algum tempo depois, os donos da terra onde a chuva caiu durante anos a fio conspiraram em silencio pela volta das poças de água onde as pessoas cabisbaixas viam o reflexo do seu olhar triste. Tentaram convencê-las de que era mais fácil olhar para baixo do que para cima, de que o sol não existia, de que era mais bonito o som da chuva do que o som das canções que brotavam espontaneamente.

E foi desta forma que eles roubaram o sol e a chuva voltou. Com suas águas foram-se os risos, as flores e as canções. O pouco de luz que outrora aparecia timidamente agora abraçava o que restava dos olhares que se encontravam na penumbra de um céu carregado.

Tudo voltou a ser como naquele dia de Inverno em que nasci.
Ficou então a lembrança daquele momento em que, das asas do pássaro, contemplei o que o coração ansiava, e num voo aprendi que para quem sonha a chuva não molha, e que os filetes de luz são o suficiente para intuir o sol, que não tem dono e que cedo ou tarde se abrirá.

*Esta nota é uma alusão ao Inverno que mais uma vez se abateu sobre o Brasil

O caminho das mãos vazias

Um dia eu precisei do Karatê.
O precursor do Karatê foi Bodhidharma, o fundador do Zen-budismo.
Por volta do Séc V, Bodhidharma foi convidado pelo imperador para levar seus conhecimentos à China. Desta experiência nasceu, dentre outras artes marciais, o Kempo (Karatê Chinês) que foi levado à ilha de Okinawa no Japão provavelmente por pescadores chineses, e veio a dar origem ao Okinawa-Te, culminando no Karatê-Dô. Por duas vezes houve proibição do uso de armas em Okinawa. Criou-se então uma forma de combate que utilizava o próprio corpo como arma. Daí então o surgimento da palavra Karatê-do (“Kara” Vazio – “Te” Mãos – “Do” Caminho).
Numa fase pessoal muito difícil, a necessidade imediata de auto-defesa me levou ao Karatê.
Passei por vários Senseis(1) até que por mero acaso encontrei o Mestre Naoyuki Hirakawa. Foi ele quem me ensinou o verdadeiro Karatê. Um dos primeiros ensinamentos que tive e que levaria para o resto da minha foram a não-violência, concentração e disciplina.
Tempos depois, numa fase de busca espiritual, o contato com os ensinamentos de Mestre Naoyuki Hirakawa me levaram à filosofia que deu origem ao Karatê-do, que é o Zen-budismo. Na fase em que me encontrava, o contato com a filosofia Zen mudaria tudo na minha vida. O Zen pode ser compreendido como uma experiência direta, uma forma de santificação do momento presente, do mais simples ato cotidiano, de ver e viver a vida, algo bastante diferente do imobilismo, da fatalidade, da resignação, das imagens de martírio e da certa infantilização que herdamos da cultura Judaico-Cristã. Com o estudo do Zen, passei a ver com outros olhos o Karatê-do e do quanto havia de sabedoria nesta arte marcial. A lógica que fundamenta as bases, defesas e ataques é uma maneira original de aprender sobre a aplicação de princípios físicos corretos que garantem equilíbrio do corpo dentro do centro de gravidade e eficiência ao mais simples movimento de ataque e defesa. Com a expansão do conhecimento, passei, por exemplo, a aplicar a lógica do Kata (2) no ato de tocar violão: Repetição, rigor, perfeccionismo, concentração, aproximação entre movimento e eficiência (Maior resultado pelo menor caminho) e o “não pensar”, de forma a atingir a fluidez e a naturalidade. Outro exemplo é o ritual de dobragem do Karategi (3) que deve estar sempre impecavelmente limpo. Uma forma de aplicação da filosofia Zen sobre o mais simples ato cotidiano, auferindo-lhe intensidade e excelência, atitude que transporto para o meu dia-a-dia. Em várias fases da minha vida o sentido literal da palavra Karatê se adequou perfeitamente pois me encontrava e me sentia de “mãos vazias”. A segunda vez que o Karatê-do me ajudou foi quando o levei para fora do Dojo (4). Nesta fase ele já havia se transformado em muito mais do que um meio de auto-defesa que um dia procurei. Da mesma forma que em tempos idos encontrei Mestre Naoyuki Hirakawa, também foi por mero acaso que recentemente encontrei um Sensei cuja história com o Karatê foi semelhante a minha e que é praticante do mesmo estilo de Karatê que um dia me foi transmitido: O Shotokan (5). Este Sensei gentilmente me presenteou com dois Karatê-gis e tem sido meu orientador nesta volta ao “caminho das mãos vazias”, que não tem fim. Devo muito ao Karatê-do. Dedico esta breve nota a todos os Mestres, Senseis e a todos os praticantes de artes marciais que como eu fazem do aperfeiçoamento, do estudo e da prática o seu caminho. Oss! (6) -------------------------------------------------------------------------------------------------------------- (1) É o instrutor, a pessoa que dá a aula e tratá-lo dessa forma é um sinal de reconhecimento e respeito.
(2) Conjunto dos movimentos ou formas ideais de reprodução e de transmissão das técnicas de algumas artes marciais.
(3) Denominação formal para o uniforme de treinamento de Karatê.
(4) Termo emprestado do Zen-budismo. É o local onde se treinam artes marciais japonesas.
(5) Estilo de Karatê fundado por Gichin Funakoshi (Okinawa, 1868 – 1957)
(6) Expressão que significa, de uma maneira mais simples, "perseverança sob pressão". É uma palavra que por si só resume a filosofia do Karatê. Um bom praticante é aquele que cultiva o "sentido de oss", de respeito .

Claudionor Cruz

Por volta de 1987, como estudioso do choro escutava sem parar todos os discos que encontrava. Um destes discos (o 1º do Conjunto Galo Preto) tinha um choro chamado “O dia do Preto Velho”, de Claudionor Cruz, em que o mestre empunhava com competência o seu violão tenor.

Foi por acaso que conheci pessoalmente Claudionor Cruz. Estava falando sobre o choro com um amigo quando uma pessoa que ouvia a conversa me perguntou se eu conhecia o “maestro” Claudionor Cruz. Para encurtar a conversa através desta pessoa consegui o contato dele e imediatamente agendei um encontro em sua casa, em Pilares, Zona Norte do Rio de Janeiro. Para esta empreitada contei com o valoroso apoio de um amigo, o Alexandre Nunes, músico e estudante de Musicoterapia no Conservatório Brasileiro de Música e que dividia comigo a primeira formação da  Orquestra de Cordas Brasileiras, tocando bandolim.

O ônibus para Pilares saía da Praça Tiradentes, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro. Chegando lá, nós subimos uma ladeira íngreme que nos levou à casa do mestre. Uma placa na porta indicava que havíamos encontrado o destino: “Claudionor Cruz – Residência”. Tocamos a campainha, entramos, e lá estava Claudionor Cruz rodeado de gente e com a casa cheia de instrumentos musicais. Eu e o Alexandre tínhamos a ideia de fazer uma biografia de Claudionor Cruz. Levamos um gravador e registramos não só seus  depoimentos como interpretações de choros ainda inéditos. Para mim era algo inacreditável: Eu, com 22 anos, acompanhando Claudionor Cruz ao violão... Tentei reproduzir estes encontros musicais no meu CD Guitar Works, na faixa “Compadre Luiz ” em que tento imitar o fraseado de Claudionor Cruz no violão de cordas de aço, como se estivéssemos tocando em duo.

Estas duas cassetes infelizmente foram extraviadas mas consegui transcrever para a partitura algumas obras interpretadas por Claudionor Cruz. Apresentei uma delas ao Afonso Machado, do Galo Preto, que foi registrada no 3º disco do conjunto. Esta música se chama “Este Choro é meu pranto” e conta com um belíssimo arranjo de Luiz Otávio Braga.

Organizamos uma palestra no Conservatório Brasileiro de Música. A ideia era mostrar aos estudantes esse documento vivo da Música Brasileira. Claudionor Cruz contou muitas histórias e interpretou vários temas de sua autoria. Claudionor Cruz estava acompanhado por Marise, uma cantora que fazia parte do regional “As Brasileirinhas” criado por ele na década de 70. No final tive o privilégio de tocar junto com o mestre o choro “O dia do Preto Velho", gravado no 1º disco do Galo Preto, com a participação do autor.

Eu e o Alexandre estivemos no seu aniversário. Levávamos nas mãos um catálogo de partituras copiadas na biblioteca Nacional. Por solicitação do próprio Claudionor Cruz entregamos todo este material à uma “pesquisadora” que estava presente na sua festa de aniversário. Este material nunca mais apareceu e com ele foi-se o projeto da biografia...

Ao mestre Claudionor Cruz o meu muito obrigado. Fica a lembrança daqueles memoráveis saraus em Pilares, onde, entre música e histórias, eu aprendia sobre a vida.

Visão da Igreja da Penha

Santa Teresa é um bairro localizado no alto de uma serra entre as zonas sul e central do município do Rio de Janeiro. Foi neste bairro que nasci e me criei.
Eu morava na parte mais alta de Santa Teresa, cuja serra dividia a Zona Norte e a Zona Sul, que eram ligadas diretamente pelo túnel Rebouças. De um lado da minha rua avistavam-se os prédios e as ruas dos bairros do Cosme Velho e Laranjeiras. Do outro lado da rua, avistava-se o Maracanã, o Rio Comprido, o Catumbi, parte da ponte Rio-Niterói e outros bairros da Zona Norte. A janela da minha casa estava voltada para a Zona Norte.
Desde criança me habituei a ver no horizonte um ponto iluminado em forma de “L”. Era a Igreja de Penha, localizada no alto de um morro no bairro da Penha que era visto de lado, da perspectiva da minha janela. À noite, quando não havia neblina, sua forma e sua luz se destacavam lá no fundo da paisagem.
A história desta Igreja começa no ano de 1635, quando foi edificado no alto da grande rocha uma pequena ermida em louvor a Nossa Senhora do Rosário. Com o passar do tempo, para celebrar a sua construção sobre o penhasco, a invocação passou a ser de Nossa Senhora da Penha – culto originário do norte da Espanha e introduzido em Portugal no século XVI, que trouxe a devoção para as suas colônias. Em 8 de setembro de 1816, D. João VI oficializou a Festa de Nossa Senhora da Penha, que é considerada a maior festa popular religiosa da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Era também na Penha que ficava o “Sovaco de Cobra”, reduto de choro autêntico e espontâneo onde, na década de 70, grandes mestres do choro se reuniam para inesquecíveis rodas.
Perto desta Igreja havia o Parque Xangai, um dos parques mais tradicionais do Rio de Janeiro. Na única vez que fui a este parque, lembro-me de fitar por longos momentos, desde o pé do morro, aquela misteriosa igreja cujas luzes eu avistava de casa. Nada se parecia com o que eu sonhava da minha janela, mas ela estava ali, à minha frente.
Em 2007, visitei o Brasil depois de uma longa temporada em Portugal. Passei grande parte do tempo revendo velhos amigos e lugares. Muitos abraços adiados foram dados e dos lugares muitas lembranças vieram à tona.
As despedidas não são nada fáceis.
No aeroporto, os últimos abraços e as promessas de breve retorno. A seguir, após a decolagem do aeroporto Antônio Carlos Jobim, o avião guinou à esquerda, rumo a São Paulo, onde iria fazer escala antes de partir para Portugal. Da janela pude ver, lá embaixo, a minha igrejinha da Penha. Lá estava ela – e sua imagem ia ficando cada vez menor à medida que o avião se afastava, até desaparecer. Foi a minha última visão do Rio de Janeiro. Meu olhar levava de volta a Portugal a sua santinha, cuja Igreja foi um dia uma luzinha no horizonte da minha infância.
Copidesque: Felipe Fortuna

Quando a Música me escolheu

Viviam-se tempos muito difíceis no Brasil.
A repressão imposta a partir do golpe militar dado no dia primeiro de abril de 1964 atingiu seu auge com a instauração do Ato Institucional 5 (AI-5), baixado em 13 de dezembro de 1968 e que durou até dezembro de 1978. Nesse período, todas as arbitrariedades se justificavam para punir os que fossem inimigos do regime ou como tal considerados.
Naquela época ou se estava de um lado ou do outro. De um lado, estudantes, intelectuais e artistas contestavam a política e o conservadorismo impostos pelo regime. Do outro, os militares que respondiam com cassações políticas e desrespeito aos direitos humanos no nível mais básico.
Cabiam aos artistas direcionaram o fruto do seu trabalho à contestação das políticas repressivas e conservadoras e em defesa da liberdade de expressão. Era isso que se esperava dos artistas naquela fase e foi dessa forma que meu pai e uma geração de cartunistas se tornaram chargistas, nas suas próprias palavras.
Ipanema, Zona Sul do Rio de Janeiro, era uma espécie de point dos intelectuais e artistas que faziam oposição ao regime. Em 26 de junho de 1969 sai a primeira edição do semanário O Pasquim, reconhecido pelo diálogo entre o cenário da contracultura da década de 1960 e por seu papel de oposição ao regime militar. Esse semanário, imaginado por Tarso de Castro e pelo cartunista Jaguar como um jornal do bairro de Ipanema, revolucionou também a linguagem do jornalismo brasileiro, que nunca mais seria a mesma. Dentre os jornalistas destacados da época que o fundaram estava o meu pai.
Os hippies, ícones da contracultura da época, tinham na Praça General Osório, em Ipanema, a sua feira, onde eram expostas para venda artesanatos, roupas, móveis, pinturas e esculturas. Era a “Feira Hippie”.
Eu era um habitual frequentador desta feira junto com meu pai. Eu ficava fascinado com as cores das roupas e dos quadros. Num desses passeios, fiquei parado olhando uma violinha de madeira feita à mão pendurada numa das tendas. Era uma violinha feita de uma madeira de cor amarela e em formato oval, com trastes feitos a ferro quente, tarraxas encravadas na madeira (como as antigas guitarras) e cordas de arame. Pelas características, o que seria provavelmente um adorno para exposição em uma parede qualquer, para mim foi o primeiro veículo de expressão musical desde este dia em que meu pai resolveu comprá-la e me dar de presente.
A primeira manifestação de que eu havia sido escolhido pela música sem que eu me desse conta disso, foi a angústia. Lembro-me até hoje de uma música com orquestra que passava durante a exibição das imagens do incêndio do edifício Andraus, em 1972, em São Paulo. A angústia era terrível e eu corria para os quartos dos fundos da casa para não ouvi-la. Da mesma época era uma campanha de vacinação contra o tétano, com imagens reais de crianças na fase final da doença, em que a trilha sonora era nada mais que o Prelúdio nº1 de Villa-Lobos, cuja angústia causada pela sua audiência só seria resolvida anos mais tarde quando me tornei estudante regular de violão.
Assistindo a um programa de rock na televisão, vi que um guitarrista se utilizava de um recurso que permitia o portamento das notas nas cordas do instrumento. Era o slide, um pequeno tubo oco cilíndrico, feito de metal, vidro ou cerâmica colocado geralmente no dedo mínimo, indicador ou médio da mão esquerda com o objetivo de alterar o tom em que se toca, deslizando esse tubo pelas cordas da guitarra, comum na música do Havaí, no blues e no country. Como a tal violinha não tinha trastes, resolvi utilizar o mesmo recurso. Na falta de um slide usava uma pilha pequena que dava o mesmo efeito. Foi assim que conseguia tirar qualquer melodia de ouvido. O meu pai sempre atento, só observava.
Um dos grupos mais representativos da contracultura nesta época eram “Os novos Baianos”. A combinação de cordofones* acústicos com elétricos com diversos ritmos brasileiros e que iam da Bossa Nova ao Rock’n roll começou a me criar real interesse no estudo de um instrumento de verdade. Por falta de recursos para executar melodias além do limite do instrumento, meu pai resolveu comprar o meu primeiro violão. O que para mim era uma brincadeira para o meu pai não era. Talvez ele tivesse percebido antes de mim que eu havia sido escolhido pela música.
A facilidade com que tocava violão me fazia popular entre os amigos da escola. E graças ao violão meu fim de semana era sempre concorrido, entre festas, encontros e viagens. Ao ouvido “absoluto,” com a prática instrumental, se somou o ouvido “relativo”, o que quer dizer que reconheço as notas dentro da frequência correta mas ao mesmo tempo a relação intervalar de uma nota independente da altura, e a função harmônica de cada acorde dentro de uma sequência, o que na prática, dentre outras coisas, faz com que acompanhe qualquer música em qualquer tonalidade. Mesmo assim, não contemplava a música como meio de vida.
O meu pai já pensava diferente: Não admitia que eu fosse músico amador (“Músico de hora vaga”, como dizia), que não expusesse meu trabalho a julgamento público e desde muito cedo insistia na composição. Quando foi morar em São Paulo, me telefonava com alguma frequência para saber se eu já havia composto alguma coisa… Nossos encontros em privado se tornaram verdadeiras aulas de ética, deontologia e conduta profissional, cujos princípios ainda hoje orientam a minha atividade profissional.
Depois de algumas tentativas de trilhar outros caminhos, finalmente aos 16 anos de idade assumi a música como profissão. No dia 26 de julho de 2016 estarei comemorando 35 anos de carreira.
Essa nota fica como homenagem a todos os artistas e em especial àqueles que através das cores desafiaram e venceram tempos sombrios. As mesmas cores daquela tenda onde um dia encontrei aquela violinha que me abriu um horizonte, definiu meu caminhar além de me revelar um presente que me foi dado de graça e pelo qual retribuo procurando humildemente ser expressão verdadeira do sentido de ser Músico em toda a sua plenitude.
Obrigado por tudo mais uma vez, meu pai.
* São instrumentos musicais cuja fonte primária de som é a vibração de uma corda tencionada quando beliscada, percutida ou friccionada Copidesque: Felipe Fortuna

Glauco Viana