sábado, 4 de agosto de 2018

O violão do Aique

A poucos metros da minha casa em Santa Teresa  vivia um grande amigo de infância: O meu xará Marcelo. Além de vizinhos,  estudávamos na mesma escola.

Passava longas tardes em sua casa jogando botão. Muitas vezes, ao fim da tarde, escutava o som de um violão que vinha do outro quarto.

A minha curiosidade de estudante de violão me aproximava cada vez mais daquela sonoridade.  Sempre que ia na casa deste meu amigo, arranjava um tempinho (escondido) para abrir o estojo . Ficava fascinado com o som cristalino e ao mesmo tempo doce do violão. Era o violão do Aique.

João Evangelista Aique de Almeida era o tio do Marcelo e morava na mesma casa. Num certo dia tomei coragem e fiquei de perto a escuta-lo estudando violão. Ficava fascinado com a forma como ele interpretava choros,valsas de Dilermando Reis e João Pernambuco, e obras de Francisco Tárrega. Aique era um estudante de violão rigoroso e disciplinado: Utilizava estante, partitura,apoio de pé e metrônomo.  As cordas de aço do violão davam um toque romântico e ao mesmo tempo dramático àquele repertório, e  violão soava como uma harpa… Um dia perdi a vergonha e fui conversar com ele.

Descobri então que Aique tinha sido aluno de Dilermando Reis na Casa Guitarra de Prata. Dilemando Reis era um apologista do uso de cordas de aço no violão.Ele me contava que, nas suas aulas, se ele errasse, tinha de pagar um chopp ao Dilermando Reis. Se ele acertasse, era o Dilermando que tinha de pagar a rodada. O cumprimento da sentença era ao lado, no tradicional Bar Luiz, o chopp mais delicioso do Rio de Janeiro.

Aique sabia que eu tocava violão e num dia me desafiou a interpretar“Adelita”, de Francisco Tárrega, com “expressão”.  Duvidava que eu fosse capaz executar tal façanha.
Aique tinha um Sítio em Paraíba do Sul, cerca de 140 Km do Rio de Janeiro, onde eu passava longas temporadas com meu amigo Marcelo e seu irmão, Beto, que morava em Paraíba do Sul. Paraíba do Sul, para uma criança da minha idade,  era um lugar mágico, onde eram contadas histórias de assombração e se vivia longe da confusão do Rio de Janeiro. Parecia que o tempo não passava…

Um certo dia, Aique reuniu um grupo de amigos neste Sítio. Fiquei de longe escutando sambas, choros  e serestas que eram tocadas por habitantes da localidade. Não me aproximei porque havia cerveja, e minha mãe me proibia de andar em ambientes onde se bebia…
Aique me viu de longe e me chamou pra esta roda. Anunciou meu nome, me deu um violão e eu sentei para tocar, não me lembro o que… Duas pessoas que estavam tocando violão nesta roda imediatamente me acompanharam com maestria. No fim, entre elogios e abraços, me colocaram um apelido: “Cobra criada”…

Esses dois músicos eram Seu Jaime e Seu Cecílio. Seu Jaime era um pequeno agricultor local e uma verdadeira enciclopédia de choros e sambas além de exímio solista. Seu Cecílio era um ex“malandro carioca” que ostentava no lábio inferior direito uma marca de navalhada e que “mastigava” as escalas quando fazia “baixaria” (Melodias executadas nas cordas graves do violão). Era exímio na arte do acompanhamento, em que combinava baixaria com acordes dissonantes.  Considero estes dois como meus primeiros mestres no violão, a quem dediquei um choro: O “Seu jaime e Seu Cecílio”, estreado no Concurso “Conjuntos de Choro” em 1981.

A vida fez com que me desencontrasse do Aique … Em 2007,depois de uma longa temporada em Portugal, reencontrei estes meus amigos no Rio de Janeiro em um almoço gentilmente oferecido pela famíla. Parecia um filme.Todos estavam lá. Rimos muito, relembramos histórias… Os meus amigos de infância haviam se tornado profissionais bem-sucedidos e pais de lindas crianças. Eu estava muito feliz! Foi neste encontro que descobri que o meu amigo Aique já não estava entre nós.

No final, a esposa do Aique foi no quarto buscar o estojo de violão que eu conhecia da minha infância e me entregou, dizendo a seguinte frase:  “Acho que ele queria que você ficasse com isso…” . De quebra ainda me deu todas as partituras que, quando criança, via de longe o Aique estudar e tocar. Fiquei completamente sem jeito mas resolvi aceitar, e sai desta casa com um sentimento que era um misto de agradecimento e responsabilidade.O violão é um Di Giorgio Ordem 30, Série Ouro, de 1965, de jacarandá e pinho maciços, o mesmo tipo de violão que Baden Powell e João Gilberto utilizavam, e que marcou, com sua sonoridade, uma parte da música urbana carioca. É o meu violão-amigo, onde componho e estudo. Está sempre do meu lado.

Obrigado por tudo, amigo Aique. Infelizmente não cheguei a tempo de corresponder ao seu desafio … Gostaria de lhe contar as minhas histórias na música com a mesma emoção com que você contava as suas, desta vez acompanhando pela cervejinha que você tanto gostava, e agora que minha mãe me deixa beber…

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Glauco Viana